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A rara imagem do Nascimento da Virgem do século XVI captura a iconografia bizantina tradicional com precisão teológica e profundidade espiritual
Nas coleções do Instituto Grego de Veneza, encontra-se uma notável imagem do século XVI que retrata o Nascimento da Virgem. Esta obra é um testemunho da viva tradição da iconografia bizantina que continuou inabalável nos períodos pós-bizantinos. A cena é desenvolvida com a disposição clássica estabelecida pelos padrões bizantinos, mas incorpora elementos distintos da época em que foi criada, um período em que as comunidades ortodoxas do Ocidente mantinham com devoção religiosa suas tradições iconográficas.
A iconografia do Nascimento da Virgem tem suas raízes em antigos textos apócrifos, especialmente o Protoevangelho de Tiago, que tentaram preencher o “silêncio hermético” que envolve os primeiros anos da vida da Mãe de Deus (Salvador-González). Esses relatos foram elaborados e interpretados por importantes Pais da Igreja, teólogos e pregadores, resultando na formação de um sólido corpo doutrinário do qual emergem práticas de culto mariológico significativas e festas litúrgicas. Nos trabalhos artísticos bizantinos dos séculos X e XI, a iconografia do Nascimento da Virgem foi estabelecida como um dos episódios mais importantes da vida da Mãe de Deus, adquirindo profundo significado simbólico e teológico.
Este tipo iconográfico não apenas narra o evento histórico do nascimento de Maria por Ana e Joaquim, mas também incorpora e antecipa sua missão salvífica. É um exemplo daquela pensamento teológico bizantino que combina o histórico com o doutrinário, o humano com o divino, em uma composição que transcende os limites estreitos da iconografia narrativa.
Dimensões Teológicas e Interpretação Patrística do Nascimento da Virgem
A importância teológica do Nascimento da Virgem no pensamento bizantino vai muito além dos limites de uma simples narrativa histórica. Como desenvolve de forma detalhada João Damasceno em suas homilias, o nascimento de Maria representa uma manifestação do sobrenatural no mundo. O primeiro milagre divino, segundo o grande teólogo, é que a esterilidade relacionada de Ana – com a qual Deus impediu a natureza de ser fértil antes de conceber Maria – se revelou frutífera exatamente em sua velhice, quando Deus lhe deu a força para gerar milagrosamente a futura mãe do Redentor.
Essa abordagem teológica se reflete diretamente na iconografia da imagem atual. Ana é representada na característica postura de parturiente, semi-reclinada em sua cama, vestida com ricas vestes vermelhas que simbolizam tanto a dignidade real quanto o sangue da genealogia de Davi. Sua postura é serena, sem traços de dor ou sofrimento, o que sugere o caráter milagroso do nascimento. Ao seu lado, estão assistentes – tradicionalmente interpretadas como parteiras – que cuidam do recém-nascido, enquanto objetos do cotidiano são visíveis, enfatizando a dimensão humana do evento.
O teólogo de Damasco estabelece um perfeito paralelismo entre o nascimento atual de Maria e o futuro nascimento de Jesus. A dupla semelhança se reflete no fato de que a Virgem e Cristo são ambos primogênitos e únicos filhos: ela de uma mãe estéril (Ana), ele de uma mãe virgem (Maria). Este paralelo não é acidental, mas revela o plano divino que permeia toda a história da salvação.

A Santa Ana em postura semi-reclinada com ricas vestes vermelhas na iconografia bizantina do Nascimento da Virgem simboliza a dignidade real do século XVI
Joaquim como Silencioso Testemunha do Mistério Divino
Na segunda imagem que analisamos, a figura de Joaquim se destaca com o halo dourado que o distingue como santo. Seu manto escuro e a postura pensativa contrastam com a atividade vibrante que se desenrola ao redor do quarto feminino. Essa escolha iconográfica não é acidental. Na tradição bizantina, Joaquim frequentemente aparece em um papel secundário durante o nascimento de sua filha, não por falta de importância, mas como reconhecimento da natureza especial desse evento que pertence principalmente à esfera feminina do mistério da maternidade.
A presença de Joaquim na parte inferior da composição serve como testemunho da dignidade paterna e da continuidade da genealogia. Seu caráter sagrado é evidenciado não apenas pelos elementos iconográficos externos, mas também pela posição que ocupa na economia da salvação. De acordo com os relatos apócrifos elaborados pelos Pais da Igreja, Joaquim foi um homem justo que sofreu desprezo e rejeição devido à esterilidade de sua esposa, antes que o mistério divino fosse revelado.
A elaboração artística de sua figura demonstra a maturidade da iconografia pós-bizantina do século XVI, que preservou as tipologias tradicionais, mas as enriqueceu com detalhes que refletem a profundidade espiritual da época. O olhar de Joaquim, cheio de reverência e contemplação, testemunha a compreensão da sacralidade do momento em que participa como testemunha e não como protagonista central.
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São Joaquim com halo dourado e vestes escuras na iconografia bizantina do Nascimento da Virgem expressa a silenciosa devoção do pai do século XVI
Visão Geral da Composição Iconográfica: Arquitetura do Espaço Sagrado
A composição iconográfica total, como retratada na terceira imagem, revela a sofisticada disposição que caracteriza a arte bizantina do século XVI. A arquitetura do espaço sagrado é construída em torno de elementos clássicos que se referem à igreja paleocristã e bizantina: colunas com capitéis, arcos, cúpulas e grades que criam um espaço digno para o evento sagrado. O véu vermelho que se estende na parte superior da cena funciona simultaneamente como elemento decorativo e como símbolo da dignidade real dos pais da Mãe de Deus.
Observamos como o artista organiza o espaço em níveis que se complementam. No nível central, a ação principal se desenvolve em torno de Ana e do recém-nascido, enquanto os personagens secundários são colocados nas partes laterais e inferiores, conferindo plenitude e profundidade à cena. Essa disposição reflete o pensamento hierárquico que permeia a teologia e iconografia bizantinas, onde cada elemento ocupa seu lugar de acordo com seu valor e função espiritual.
A representação do pequeno recém-nascido no centro inferior da composição merece atenção especial. Este detalhe figurativo não é apenas decorativo, mas carrega um significado simbólico mais profundo que se relaciona com a teologia da “nova Eva” desenvolvida nos textos patrísticos. Esta imagem antecipa o futuro papel de Maria como mãe do Redentor e simboliza o início da regeneração da humanidade.
Em conclusão, a presente imagem do Nascimento da Virgem é um exemplo maduro da tradição iconográfica bizantina que foi preservada e evoluiu nos períodos pós-bizantinos. Além de seu valor artístico, funciona como um texto teológico escrito com cores e formas, revelando a profunda espiritualidade e o pensamento doutrinário sofisticado que caracterizavam a tradição ortodoxa da época. A preservação dos tipos iconográficos clássicos, combinada com as inovações técnicas do século XVI, cria uma obra que serve como uma ponte entre a antiga e a nova era, mantendo intacta a mensagem teológica e espiritual da tradição bizantina.

A atmosfera doméstica da cena na iconografia bizantina do Nascimento da Virgem equilibra o sagrado com o elemento humano em uma composição harmoniosa do século XVI
Bibliografia
Costello, Angela L. “O Culto da Virgem Maria no Império Bizantino do Século VI.” Academia.edu, 25 de outubro de 2016.
Kalodimos, Christina A. “Retrato e significado da Virgem Maria na iconografia bizantina da paixão durante os séculos XI e XII.” Teses e Dissertações de Pesquisa de Pós-Graduação, Universidade do Norte de Illinois, 1991.
Salvador-González, José María. “Iconografia bizantina do Nascimento da Virgem Maria à luz de uma homilia de São João Damasceno.” Academia.edu, 8 de junho de 2015.
Salvador-González, José María. “Iconografia bizantina do Nascimento da Virgem Maria à luz de uma homilia de São João Damasceno.” Mirabilia Ars, n.º 2 (2015): 200-226.
Salvador-González, José María. “Iconografia bizantina do Nascimento da Virgem Maria à luz de uma homilia de São João Damasceno.” ResearchGate, 24 de julho de 2018.

